terça-feira, 4 de setembro de 2012

Back to Basics - Citroen 2CV



Há algumas semanas tive a sorte de passar dois dias ao volante de um Citroen 2CV de 1989.
Há algo de mágico na simplicidade de um 2CV que os torna irresistíveis. E a sua simplicidade não resulta  da idade do projecto inicial (os primeiros protótipos remontam a 1937!) mas do próprio caderno de encargos do programa de desenvolvimento, que exigia um carro extremamente simples de conduzir e manter, e barato, quer na compra, quer na manutenção, quer em consumos.

Mas não se deve confundir simples com básico, até porque por vezes o simples pode ser simplesmente genial. 

Na década de 30, devido aos elevados custos de desenvolvimento e de inicio de produção do Traction Avant, a Citroen encontrava-se à beira da falência. Rapidamente a Michelin, que já era a sua maior credora, tomou controlo da empresa.
Pierre Michelin acreditava que a razão da falência da Citroen se devia a gama que comercializava desde o final da 1ª Guerra Mundial. Uma gama de carros topo de gama, tecnicamente complexos, e caros, que contrastavam com uma França maioritariamente rural e pobre.
Como resultado disso o primeiro projecto da Citroen "era" Michelin, nasce em 1936, e tinha caracteristicas muito especificas, para ir ao encontro da realidade social e económica francesa: o carro deveria ser extremamente barato, capaz de transportar 4 pessoas e 50 kg de bagagem (entre os quais uma cesta de ovos), por estradas em terra, sem partir nenhum ovo, e consumindo menos de 3l / 100km!
Em relação à famosa questão do chapéu (costuma dizer-se que um dos requisitos iniciais do projecto seria que deveria permitir aos camponeses viajarem sem tirar o seu chapeu), não foi um requisito inicial mas sim uma modificação posterior exigida por Pierre-Jules Boulanger, vice-presidente da Citroen e chefe do departamento de engenharia e design, estando por isso intimamente ligado ao projecto TPV - "Toute Petite Voiture", ou viatura muito pequena.
Outra das marcas de Boulanger no TPV foi a obsessão com a redução de peso. Para atingir o alvo do consumo extremamente baixo e manutenção simples, o seu motor teria de ser extremamente simples e de muito baixa cilindrada - 375cc. Como resultado disso, o carro teria de ser o mais leve possível. Para isso Boulanger criou um departamento com uma função apenas: desmantelar os protótipos peça a peça, pesar cada um dos componentes e redesenhá-los da forma mais leve possível. 

Os primeiros 20 protótipos começaram a ser testados em 1937. Utilizavam em grande parte alumínio e magnésio na sua construção, tinham motores 2 cilindros opostos mas refrigerados a água, os assentos eram como camas de rede, presos por cabos a partir do tecto, e a suspensão tinha um complexo sistema de 8 barras de torção, que tal como a refrigeração a água, não chegaram à produção.

Durante o Verão de 1939 o carro recebeu a homologação para o mercado francês, e brochuras foram impressas para a apresentação do TPV, agora designado por 2CV - esta era a potência fiscal segundo o sistema francês de impostos automóvel - no Salão Automóvel de Paris, em Outubro. Contudo em Setembro França declara guerra à Alemanha, o lançamento do 2CV é cancelado, e todos os protótipos já construídos são destruídos (excepto cinco) para impedir que caiam nas mãos dos Alemães.





O motor com refrigeração líquida



O projecto 2CV só volta a ver a luz do dia em 1948, depois do fim da 2ª Guerra Mundial e com o fim do "Plan Pons", de racionalização industrial, que impediu a Citroen de produzir carros fora do segmento médio - com o seu Traction Avant.

O carro apresentado utilizava aço na sua construção, pois ao contrário do que a industria automóvel previa nos anos 30, o alumínio e outros metais leves não se tornaram acessíveis e economicamente viáveis. Uma das formas de compensar o aumento de peso decorrente desta alteração foi a transmissão ganhar uma relação, passando a ter quatro.

O 2CV tinha ganho também um design mais sofisticado mas igualmente básico (tinha só uma luz stop traseira, a meio, e estava disponivel apenas em cinzento), por Flaminio Bertoni, mantendo a cobertura móvel a todo o comprimento do carro, funcionando também como tampa da mala. O interior torna-se um pouco mais "civilizado", com bancos convencionais:
Bancos com estrutura tubular e bandas elásticas

Luz stop única e cobertura móvel a todo o comprimento




Foi alvo de chacota da imprensa internacional, mas foi bem recebido pelo público, pois a realidade social e económica de França no pós-guerra não era muito diferente dos anos 30. De tal forma que em apenas alguns meses de comercialização o 2CV tinha uma lista de espera de 5 anos! Um 2CV usado era mais caro do que um novo, pois o comprador não tinha de esperar para o ter.

Em 1951 surge a versão Fourgonnette, carrinha de trabalho que foi pioneira do perfil "caixa grande atrás - frente de utilitário" utilizado até aos dias de hoje por quase todos os fabricantes.




Em 1958 surge uma das versões mais interessantes do 2CV, o Sahara. Tinha um segundo motor de 425cc atrás, que propulsionava as rodas traseiras, evitando assim um sistema complexo de tracção ás 4 rodas. Os dois motores são completamente independentes - caixas de velocidades e até mesmo depósitos de combustível - e em estrada normal podia mesmo ser utilizado apenas um, para poupar combustível. 

Foram produzidos apenas 694 Saharas, e há a informação de apenas existirem cerca de 30 neste momento.


   Na foto é visível o bocal de enchimento de um dos depósitos de combustível na porta do passageiro, existindo outro igual na porta do condutor.

Uma ignição para cada motor



Em 1961 passa a estar disponível como opção o motor de 602cc, com um aumento substancial de potência - cerca de 30cv. É na década de 60 que o exterior também é modernizado, com o aparecimento da terceira janela lateral, e do segundo farolim traseiro.



Até 1990, quando o último dos 5.144.966 2CV foi produzido, em Mangualde, existiram apenas ligeiras actualizações.


Existiram outras variações do 2CV, algumas não produzidas pela Citroen, e menos conhecidas, mas igualmente interessantes.

Méhari

Talvez a mais conhecida seja o Méhari, uma espécie de Mini Moke do 2CV. Foram feitos cerca de 150000, entre 1968 e 1988. Destes cerca de 1300 eram Méhari 4x4, com a mesma mecânica base do 2CV mas com uma caixa de transferências de 3 velocidades. Graças ao incrível curso do sistema de suspensão baseada na do 2CV normal, as suas capacidades fora de estrada garantiram-lhe o sucesso comercial, sendo inclusivamente usado para fins militares.









Cabriolet / Radar

Em 1956, Robert Radar fez alguns protótipos, usando a base do 2CV e uma carroçaria feita por ele em fibra de vidro. Os representantes da Citroen Bélgica gostaram tanto do modelo que o introduziram no seu catalogo, sob encomenda. Cerca de 25 foram construidos, pensa-se que existirão hoje 5.








Coupé / Bijou

O Citroen Bijou foi construído na fábrica da Citroen no Reino Unido, em Slough, entre 1959 e 1964. Foi feito para agradar ao gosto mais conservador do público inglês, pois a Citroen receava que o 2CV não fosse bem aceite aqui. Utilizava a base e mecânica do 2CV normal, com uma carroçaria em fibra de vidro, desenhada por Peter Kirwan-Taylor.
O Bijou não foi o sucesso de vendas esperado, muito por culpa do preço alto face à concorrência. 
Para além do preço, o peso extra da carroçaria teve um impacto negativo nas performances, sobretudo nas acelerações. Curiosamente tinha uma superior velocidade máxima e melhor consumo, devido à maior eficiência aerodinâmica da carroçaria.  
Foram produzidos cerca de 210 unidades, cerca de 140 sobrevivem hoje.





FAF

Ainda baseado no 2CV, a Citroen criou o FAF - Facile à Fabriquer e Facile à Financer (fácil de produzir e fácil de financiar).
Na prática era uma versão do Méhari com carroçaria em perfis metálicos direitos, fáceis e baratos de produzir. O alvo desta versão era a produção e venda em países em desenvolvimento.
Foi produzido entre 1977 e 1981, em vários países, entre os quais Portugal, num total de 1785 unidades.





Em 1978 surge o FAF A44, uma versão 4x4 baseado no Méhari 4x4, com uma carroçaria mais simples, totalmente aberta, destinada sobretudo para fins militares.







Bom, agora que já falamos da história do 2CV, vamos voltar ao início, à minha experiência.
O meu companheiro foi um 2CV 6 Club de 1989, com o motor de 602cc e 29cv.

Primeiro os aspectos negativos, ou vá, menos positivos, pois temos de ter em atenção, mais uma vez, a idade do projecto.
O motor. Obviamente não podemos estar à espera de prestações fantásticas, mas não é de todo mau. A potência está num nível aceitável, é o binário, ou a falta deste (39nm ás 3500rpm mais propriamente), que torna a sua condução por vezes complicada. Tenho aqui de fazer uma ressalva, pois acredito que "puxando" mais pela mecânica esta sensação de falta de força se dissipe um pouco. Foi isso que me foi dito pelo dono quando falamos da minha experiência. O que faz sentido vendo o regime alto a que se atinge a potência máxima - 5750rpm!
Como o dono foi simpático o suficiente para me emprestar o carro, não abusei nem um pouco da mecânica, e talvez isso tenha aumentado essa sensação de falta de performance.
Esta situação é ampliada pela caixa de velocidades. Que surpreendeu pela positiva, com comando fácil de utilizar, e pela forma como aceita qualquer redução ou subida de relação sem queixume. No entanto há um "buraco" entre 1ª e 2ª velocidade que em situações de declives acentuados, pode deixar quem não "puxe" convenientemente pelo motor, numa situação complicada. Por mais do que uma vez tive de reduzir para 1ª velocidade em subidas, e quando sentia o carro já com um andamento folgado, passava para 2ª velocidade e... nada, tendo de voltar a 1ª velocidade.
Mas mais uma vez, e acreditando na voz - experiente - do dono, o problema é meu e não do carro. Um 2CV não gosta de ser usado como um clássico antigo, pelos vistos... 

Tudo o resto foi uma agradável surpresa. Mesmo olhando para o carro como sendo de 1989 e não dos anos 60, o que realmente é.
Os travões dão uma sensação de confiança, com um ataque firme ao primeiro toque no pedal. Acredito que não tenham muita resistência à fadiga, mas vendo as viagens que o dono já fez com ele, não devem causar qualquer problema.
E a simplicidade de utilização distancia-o de facto dum carro antigo. O motor liga-se sem qualquer hesitação, mesmo a frio sem necessidade de "fechar o ar". A embraiagem é leve e com bom feedback. Parece um carro moderno.



A suspensão é algo de inacreditável. Claro que quem não conheça ou não perceba a complexidade que é construir um automóvel poderá achar que é só colocar uma suspensão muito mole num carro e pronto. 
Nada mais longe da verdade. 
A Citroen domina a "ciência obscura" da suspensão, e o simples 2CV é mais uma prova da genialidade dos franceses. O conforto é algo inacreditável! Lombas, buracos, nada se sente ao volante do pequeno 2CV. O incrível é que quando chegamos a uma curva ou uma rotunda, não temos a sensação que tudo se vai desmoronar. Claro que não tem um comportamento neutro e sem oscilações de um carro moderno, mas não é de todo estranho. 

Interior. Bom, penso que a palavra ergonomia não existiria nos anos 50/60. Ou se existia, os designers no 2CV não a pensaram para pessoas como eu, com mais de 1,90m. Mudar de mudança implica a realização de abdominais para chegar ao selector. Os pedais dão a sensação de terem sido colocados um pouco ao acaso. E nada, nada tem a ver ou está no sitio onde estaria num carro moderno. Onde costuma estar o comando de abertura do capot está um manipulo de ajuste de altura dos faróis - aqui mais uma prova da atenção ao detalhe na concepção do 2CV, pois os designers sabiam que ao colocar uma suspensão tão flexível, o nível dos faróis teria de ser frequentemente ajustado, e tornaram essa tarefa fácil. 
Para termos ar quente usamos comandos que se identificam facilmente, mas para ter ar fresco já temos de usar outro comando completamente diferente e algo escondido, para abrir a faixa de metal sob o pára-brisas.
Foi também bastante engraçado ver a minha namorada à noite a tentar abrir a porta para sair. Encontrar o manípulo é, para quem não conhecer, um desafio. 
E apesar de inicialmente parecer pequeno, o interior leva confortavelmente 4 adultos. 

Deixando os aspectos práticos, passemos ao importante, a experiência de usar um 2CV. 
É fantástico, não vale a pena estar com rodeios. Toda a gente olha, sorri, acena, apita, e se parado, facilmente reúne atenção de alguns "fotógrafos". 
O "meu" 2CV tinha também a vantagem de ser num branco incrivelmente brilhante e num estado imaculado, despertando ainda mais atenções e simpatia. 

Ah, e claro, o tecto. Extremamente simples de usar e obrigatório recolher num dia de sol como os que em que eu o usei. 

Fiquei rendido! A "simpatia", a simplicidade, de utilização e construção, que nos leva a acreditar que qualquer problema que venha a surgir, conseguiremos resolver com uma chave de fendas, o design único... Enfim, vai deixar saudades... 


Umas fotos da minha companhia:







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